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domingo, 8 de novembro de 2015

"Que Horas Ela Volta?", de Ana Muylaert (2015)



Não, este filme não é uma inovação. Bem longe disso. Ele até fala de assuntos que estão bem em foco, que todo mundo esta comentando, mas a forma simples com que ele aborda os assuntos, o jeito delicado e cuidadoso que Anna Muylaert teve com cada personagem, fazem de "Que Horas Ela Volta?" algo fantástico que vai tocar você, se não emocionalmente, será de modo mais reflexivo, mas me arrisco a dizer que na maioria das pessoas, das duas maneiras.
O filme narra a vida da humilde Val (Regina Casé), a babá e empregada doméstica de uma família da classe média/alta paulistana. Val deixou a filha no interior de Pernambuco para tentar uma vida melhor nas regiões mais ricas do Brasil. Dez anos depois, sem quase qualquer tipo de contato, Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, se muda durante uma temporada para junto da mãe (e consequentemente, para a casa de seus patrões), a fim de prestar vestibular. Jéssica consegue bagunçar o ambiente daquela casa com os seus questionamentos, criando um conflito de classes.
A produção do filme é muito simples, as locações são poucas e basicamente o longa todo se passa dentro da casa dos patrões de Val, o que não atrapalha em nada. O que realmente pode incomodar é o som do filme. Em algumas cenas o som fica muito baixo, você mal consegue escutar alguns diálogos mas também não é nada que tire seu foco. Você supera isso porque tecnicamente o resto do filme é perfeito, passando pelas escolhas de câmera da diretora que fazem o espectador se sentir enclausurado, preso naquela casa. A escolha dos atores também foi incrível, todos conseguindo tirar o máximo dos seus papéis fazendo o espectador conseguir relacionar-se relacionar mesmo com aqueles que aparecem pouco. Todos os personagens da casa tem papeis importantes: Val, é a principal personagem, a empregada que esta na casa há 10 anos, que ajudou a criar o filho dos patrões, uma personagem que boa parte do tempo é completamente submissa. Apesar de Val ser praticamente da família (ou simplesmente é conveniente ela pensar assim), ela ainda não senta à mesa com os patrões, não participa das festividades e dorme em um minúsculo quarto nos fundos da casa. Val é uma personagem de fácil identificação para a maioria dos espectadores. Ela trabalha duro, raramente tem seu esforço bem recompensado, pega ônibus lotado, humilde, bem humorada e super carismática. O personagem é ótimo mas muito se deve ao excelente trabalho de Regina Casé que passa tanta veracidade ele que esquecemos a atriz e só vemos a Val. A forma como Val se relaciona com os demais personagens é o que leva o filme para frente. “Finge que está podando, que eu finjo que estou aguando”.
Jéssica é aquilo que modifica as estruturas da casa, seu espírito jovem, humilde sim, porém diferente de sua mãe. Sabe que merece mais, não deve se contentar com pouco, deve “brigar” por aquilo que sonha e acredita. Assim como nos identificamos com Val, apesar das diferenças das personagens, podemos nos identificar com Jéssica que fica horrorizada vendo a maneira como sua mãe é tratada, todo o preconceito escondido em pequenos gestos, assim como nós ficamos. “Eu não sou melhor que ninguém, mas também não sou pior”.
O filme é um belo retrato da família "tradicional" brasileira.
Os outros personagens que vivem na casa, apesar de não se destacarem tanto como as principais, são fundamentais para a narrativa do filme.  Carlos (Lourenço Mutarelli), o pai da família, nos aparenta ser um cara depressivo, sem atitude, fraco. Carlos aparentemente desistiu da vida e assim que recebe as primeiras críticas negativas sobre seus quadros para de pintar. Essas suas tomadas de decisões precipitadas rendem cenas bem tensas entre ele e Jéssica uma vez que Carlos demonstra estar encantado com a menina. Fabinho (Michel Joelsas), um típico adolescente que está saindo do colégio e não sabe o que quer da vida também pretende prestar o vestibular mas muito mais pela pressão de sua mãe do que por sua vontade. Fica bem claro que o relacionamento entre Fabinho e sua mãe não é bom, e esta distância entre os dois acaba abrindo espaço espaço para que Val ocupe a posição de cuidadora e acolhedora do garoto, representando para ele um espécie de figura materna. Ao longo do filme há diversas cenas lindas entre os dois mostrando esse relacionamento cheio de amor. É um relacionamento de substituição. Val é a mãe que Fabinho não tem, o garoto substituiu a carência que Val sentia da filha e devo confessar que chorei no momento em que os dois personagens se despedem. Fabinho também é a âncora que prende Val à casa dos patrões. Não é pelo salário, pela moradia, mas sim o amor pelo garoto que a mantém lá. Um amor que é muito bem retribuído por Fabinho. Nos momentos em que está para baixo ou simplesmente quer carinho, é Val a quem ele procura. “Ela me acha inteligente, não me acha burro”.
Podemos considerar Bárbara (Karine Teles), uma mulher cheia de preconceitos, a antagonista do filme. Com uma maquiagem muito forte, a impressão que dá é que a diretora quis forçar a barra no visual, colocando ela como uma típica vilã de novela. Mas pessoalmente, acho que não. Infelizmente existem pessoas assim e Barbara não é má simplesmente por ser má, mas sim por reflexo de sua criação. Ela é de uma geração onde as classes sociais ainda eram bem definidas e não havia essa “mistura”. Ela não odeia Val e Jéssica, simplesmente não quer se misturar. Sim, ela está errada em pensar assim e o filme trabalha bem essa questão. “Claro, você é praticamente da família”.
Depois de falar um pouco da historia do filme e seus personagens, me permitam citar alguns “símbolos” que achei fantásticos no filme, onde ele passa a mensagem de forma clara mas sem ser aquela coisa forçada que não te faz pensar e deixa tudo mastigado. O primeiro deles é a educação. Achei simplesmente fantástico como a obra aborda o tema educação (sendo um professor achei mais fantástico ainda). Ao mesmo tempo em que ele mostra como as oportunidades são as mesmas, uma vez que tanto Jéssica como Fabinho tem a oportunidade de fazer um vestibular, as chances de conseguir passar ou não, no entanto, claramente são desiguais. Um estudou a vida toda em escola particular, teve a melhor educação, se não passar no vestibular, o que acontece? Ganha uma viagem para Austrália para aperfeiçoar seu inglês. A outra teve que viajar para outro estado para conseguir fazer o curso que desejava e se não passar retorna para Recife como a pessoa que não conseguiu. Entendem o que eu quero dizer? A educação ainda é um privilegio que poucos tem chances de alcançar e muitos apenas com muito esforço. Achei bacana também a parte que Jéssica fala que a escola onde ela estudava não era boa mas tinha um professor de história que fez a diferença para ela, o que revela a importância social da educação.
Jéssica, Val e a piscina ao fundo.
O sorvete de Fabinho e a piscina são outros dois elementos a serem analisados, sendo o segundo mais destacado; Ambos aparecem em momentos-chave da história maso sorvete lembra muito a minha criação. Ouvi muito “Você é pobre, mas, acha que é rico”, “é pobre, mas, é cheio de frescura” simplesmente por querer um sorvete de uma determinada marca mais cara que a outra, ou um brinquedo diferente daqueles de 1,99 (sim, no meu tempo as lojas de um R$1,99 bombavam) como se isso fosse errado. Parecia que estava querendo ser aquilo que eu não era ou saído daquilo que a sociedade queria que eu fosse. Assim como Jéssica ouviu de Val para não comer o sorvete de Fabinho e sim o mais barato que ela tinha separado, eu já ouvi algo parecido de minha Vó que também foi empregada doméstica. Coisas muito parecidas. Não que minha vózinha seja ignorante (longe disso, dona Maria é muito esperta) mas, sim, por que ela foi criada assim, toda a sua formação foi onde você só pode chegar até certo ponto, querer passar disso é um sonho. Muitas vezes ouvi dela a frase, “quando tu tiver patrão”, e nunca o contrário “Quando você for o patrão”. Para ela, assim como para Val, tem coisas na vida que já nascemos sabendo e destinados a ser.
A piscina tem relação com o sorvete porém, no filme, ela tem um destaque maior. Val nos 10 anos que ficou na casa nunca entrou na piscina mesmo sendo convidada e deixa claro para sua filha não aceitar o convite também. A piscina é um símbolo maior das diferenças de classes no filme, tanto que depois que Fabinho joga Jéssica na piscina, Bárbara liga horrorizada para o limpador pedindo para que ele venha o mais rápido possível e avisa a todos que não devem entra na piscina porque dentro dela havia um rato. Esse foi um ponto de ruptura do filme. Fabinho, por ter sido criado por Val, não tem essa visão preconceituosa em relação às diferenças de classe e por isso ele que acaba levando Jéssica para a piscina. Outro momento, é logo após a despedida de Fabinho. Val não tem mais por que ficar na casa uma vez que o garoto era a única coisa que a prendia. E como ela se libertou? Entrando na piscina. Quebrando a regra não escrita da vida que ela passou o filme reforçando. Ainda tímida, molhando apenas os pés, mas alegre porque dali em diante será a Val, será a mãe de sua filha.
O feminismo e a luta da mulher também são destaque no longa. Todas as três protagonista são mulheres fortes e elas que levam a história do filme, cada uma representando um lado da mulher moderna ou antiga. Val a típica dona de casa, Jéssica a jovem que vai atrás do que luta, que não tem medo, que tem que se provar, e Bárbara, a mulher que trabalha fora, que é criticada pela sociedade por não ficar com seu filho. Mas alguém naquela casa tem que ganhar dinheiro. Já que os homens da casa não conseguem, ela vai e faz. Bárbara não depende de ninguém, é bem sucedida, assim como muitas mulheres dos dias de hoje (ou nem todas, a luta continua infelizmente, já deveríamos ter igualdade). Um detalhe bem interessante é que a equipe tecnica do filme é formada por mulheres: direção, direção de fotografia e montagem. Legal né? Mulheres no cinema, Êba!!!
Uma obra simples porém muito bem realizada que dialoga bem com o espectador. “Que horas ela volta”, mesmo falando de um tema já bem debatido no cinema nacional, consegue ser único, consegue brilhar, com toda sua humildade. Eu me identifiquei muito com o filme. Como falei tenho a minha Val na vida, que mesmo com o seu jeito de ser, me inspira a querer mudar o futuro que me foi imposto, assim como Jéssica. Claro que não dá para mudar tudo e isso é outro ponto que o filme ressalta (já dei spoiler demais, esse eu não vou dar). Tem coisas na vida que não conseguimos mudar, tem erros que acabam se repetindo, mas a forma como vamos encarar esses erros, isso sim, pode ser um fator de mudança. O longa é cheio de detalhes, consegue abordar tantos temas, tem tantas cenas que eu poderia falar, tantas falas fantásticas para citar, mas daí, o texto ficaria muito longo (maior do que já está), então vou encerrar por aqui mesmo. Espero sinceramente que todos assistam o filme e, mais do que isso, compreendam a obra, passem a respeitar a pessoa ao lado, a ter um olhar mais humano, pois no final das contas, o "Que horas ela volta?" é isso, fala sobre mudanças e esperança, mas principalmente, respeito ao próximo.




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