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sábado, 4 de julho de 2015

Van Morrison - “Into the Music” (1979)




“Quando você escuta a música tocando sua alma/
E sente em seu coração e cresce e cresce/
E vem daquele rock and roll das ruas
e a cura começou” 
da letra de “And the Healing Has Begun”




Tem uma cena do filme “The Last Waltz” (“O Último Concerto de Rock” no Brasil), de Martin Scorsese, que define o irlandês Van Morrison, autor do disco que é um dos favoritos totais aqui da casa: “Into the Music”, de 1979. Após cantar seu sucesso “Caravan” com The Band, o guitarrista do grupo, Robbie Robertson, olha para a plateia e diz: “Van the Man”. É exatamente isso que Van Morrison é: THE MAN! Um irlandês baixinho, arretado, irritado, brigão, xarope, malão mesmo. Mas quando compõe e abre a boca pra cantar, todo mundo esquece estas “qualidades” e se delicia com a música em estado puro que se derrama daquele corpinho. Mas nem sempre foi assim.

Durante os anos 60, ele surgiu liderando o grupo Them, que fez muito sucesso com “Gloria”. Quando o empresário começou a dar palpites, Van partiu pra carreira solo, que começou lá em cima com o cultuado "Astral Weeks", em 1968, e seguiu com "Moondance", dois anos depois  (ambos perfilados aqui no blog como ÁLBUNS FUNDAMENTAIS). Na segunda metade dos anos 70, entretanto, ele passava por um momento de reflexão profunda da sua carreira musical e se voltando – como todo irlandês, aliás – para a religião e o amor a Deus. Após gravar “Veedon Fleece”, em 1974, ficou três anos fora dos estúdios e dos palcos. Ao voltar, fez um disco chamado “A Period of Transition”, que era exatamente isso. No ano seguinte, ensaiou uma volta à velha forma com “Wavelength”, mas ainda não era aquele disco que se esperava de uma figura mítica como ele. Isto só aconteceu em 1979 com “Into the Music”, não por acaso uma brincadeira e trocadilho com uma de suas canções mais conhecidas, “Into the Mystic”. Ao lado de seu fiel escudeiro, o baixista David Hayes, mais a violinista Tony Marcus e a dupla extraordinária Pee Wee Ellis (ex-James Brown) no saxofone e Mark Isham nos trompetes, teclados e arranjos, entre outros, Van reuniu um grupo de canções que louvam a Deus, ao poder curador da música e, é claro, às mulheres, todas embaladas em blues, folk, R&B, soul e muito mais.

Tudo começa com “Bright Side of the Road”, um country com levada R&B, onde brilham a harmônica de Van, o violino de Marcus e os backing vocals de Katie Kissoon. Na letra, Van diz à mulher amada que “Do final escuro da rua/ ao lado iluminado da estrada/ seremos amantes novamente/ no lado iluminado da estrada/ Querida vem comigo/ me ajuda a repartir este peso?”.

Ao começar o disco com um discurso “profano”, Van se retrata com “o homem” em “Full Force Gale” cantando: “Como uma tempestade a toda força/ eu fui erguido novamente/ eu fui erguido pelo Senhor/ E não importa por onde eu ande/ Vou encontrar meu caminho de volta pra casa/ Vou sempre voltar para o Senhor”. Esta letra de entrega à religião é carregada pela slide guitar de Ry Cooder e o naipe de sopros fazendo aquele clima soul music.

Em “Steppin' Out Queen”, Van volta a conversar com uma mulher afirmando que ela pode “Passar seu batom/ se maquiar/ Às vezes você está vivendo num sonho/ e então cai fora rainha”. Na verdade, Van quer convencê-la a “vir para o jardim e olhar as flores”, ao invés de sair pra rua. O naipe de sopros toca um tema irresistível, daqueles de ficar assobiando o dia inteiro.

“Troubadours” traz o penny whistle (flautim irlandês) de Robin Williamson, um dos fundadores da Incredible String Band. Van fala sobre os trovadores e sua música que “trazia as pessoas que vem de longe e vem de perto/ para ouvir os trovadores”. Mais adiante, afirma que “eles vem cantando canções de amor e cavalheirismo dos tempos antigos”. Ellis e Isham também ganham solos nesta canção, que trata do poder curativo da música.

Já “Rolling Hills” traz a influência da música celta que Van ouviu a vida inteira em Belfast. E volta o discurso místico: “Entre as colinas ondulantes/ Eu vivo minha vida com ele/ Oh eu vivo minha vida com ele/ entre as colinas ondulantes/ Eu leio minha Bíblia quieto/ Oh eu leio minha Bíblia quieto/ entre as colinas ondulantes”.

Pra fechar o Lado 1, um exemplo bem claro do que se poderia chamar de soul music na versão de Van Morrison: “You Make Me Feel So Free”. Como as letras são ambíguas durante todo o disco, Van pode estar se referindo a uma mulher ou à música: “Algumas pessoas passam a vida correndo em círculos/ sempre atrás de um pássaro exótico/ eu prefiro gastar meu tempo apenas ouvindo algo muito especial/ que nunca ouvi/ Gosto de ter uma canção nova pra cantar, outro show ou algum lugar totalmente diferente para ficar/ mas baby, você me faz sentir muito livre”. Quem é “baby”? A música, uma mulher, o Deus? Faça sua escolha. O saxofonista Pee Wee Ellis deve ter lembrado dos seus tempos com os JBs, pois seu solo tem todas aquelas características dos melhores trabalhos de James Brown. E o pianista Mark Jordan brinca com o jazz de New Orleans e a sonoridade de Professor Longhair e Dr. John.

Abrindo o lado 2 do LP, mais uma ode, agora explícita, a uma mulher, “Angeliou”, um anjo em forma de fêmea. O encontro aconteceu “no mês de maio/ na cidade de Paris”. Tony Marcus faz misérias com seu mandolin e violino, enquanto Mark Jordan faz um tema ao piano que lembra aquelas peças para cravo de Bach. Ao abrir seu coração para Angeliou, ele afirma que “caminhando numa rua quem poderia imaginar que seria tocado por uma total estranha, não eu/ Mas quando você veio até a mim aquele dia e contou sua história/ Lembrou muito de mim mesmo/ Não foi o que você disse mas a maneira como pareceu a mim/ sobre uma busca e uma jornada como a minha”. Nesta canção, Van faz o que se tornou uma marca registrada de suas interpretações, o ad-lib ou a improvisação em cima da letra e do tema da música, bem ao estilo jazzístico, mudando o andamento e o tempo. À medida que avança, “Angeliou” vai se transformando numa balada R&B.

Este estilo interpretativo chega ao auge na próxima música, “And the Healing Has Begun”. O título diz tudo: “E a cura começou”. A cura através da música. Com a batida de Peter van Hooke beirando a soul music e a violinista Tony Marcus tomando as rédeas dos solos nas suas mãos, Van se transporta a um nirvana musical cantando: “Quando você escuta a música tocando sua alma/ E sente em seu coração e cresce e cresce/ E vem daquele rock and roll das ruas e a cura começou”. E se sua cura não começar ao ouvir esta música, pode crer que está muito doente!

Depois deste orgasmo musical, Van, expert em dinâmica de um disco, baixa a bola. Tudo recomeça com a única música que não foi composta por ele neste disco: “It's All in the Game”, que ganhou letra de Carl Sigman em 1951 em cima de uma melodia composta 40 anos antes por Charles Dawes, que foi vice-presidente dos Estados Unidos. Foi sucesso pop no final dos anos 50 com Tommy Edwards, um cantor de R&B. A curiosidade é que Van usa esta canção como um veículo para desaguar em outra composição sua, “You Know What They're Writing About”. Esta sim explicando a quem porventura não tenha entendido ainda o poder mágico da música e suas curas. Ele abre esta canção sussurrando: “Você sabe sobre o que eles estão compondo/ É uma coisa chamada amor através dos tempos/ Te faz ter vontade de chorar às vezes/ Te faz ter vontade de deitar e morrer às vezes/ Te anima às vezes/ Mas quando tu entendes, te levanta o astral”. No final, os sopros de Pee Wee Ellis e Mark Isham fazem um tema, enquanto Van canta “quero te encontrar/ você está aí?”. O resto da banda se esbalda até a canção ir morrendo aos poucos.

Um final apoteótico para “Into the Music” que, segundo ele, representa a volta à música. Esta busca incessante de Van Morrison pelo amor da musa, por Deus e pela cura dos males através da música continua até hoje. Recentemente, ele lançou um disco cujo título diz absolutamente tudo: “Born to Sing: No Plan B”, ou seja, “Nascido para cantar: sem Plano B”.
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FAIXAS:
1. "Bright Side of the Road" – 3:47
2. "Full Force Gale" – 3:14
3. "Stepping Out Queen" – 5:28
4. "Troubadours" – 4:41
5. "Rolling Hills" – 2:53
6. "You Make Me Feel So Free" – 4:09
7. "Angeliou" – 6:48
8. "And the Healing Has Begun" – 7:59
9. "It's All In The Game" (Charles Dawes/Carl Sigman) – 4:39
10. "You Know What They're Writing About" – 6:10

todas as composições de autoria de Van Morrison, exceto indicada
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OUÇA O DISCO:





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