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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

cotidianas #344 - Somos Reis



Chamo-me Reis, por parte de mãe. O sobrenome, ao que tudo indica, veio de Portugal, tendo em vista haver essa procedência na família. Entretanto, as raízes africanas foram as que se sobrepuseram em mim e nos meus familiares, cujas feições negras marcantes se assemelham bastante mesmo entre homens e mulheres. E, curiosamente, minha família do lado materno sempre festejou o Dia de Reis, 6 de janeiro. Mesmo que a data tenha como motivo principal a tradição cristã, pela sugestão do nome – e talvez pela assunção de certa autoimportância – nós, Reis, a celebramos, pelo menos, entre a gente.

ilustração: Cly Reis
Pois o clima de “parabéns” entre os meus e o atrevimento de tomar umas das datas mais antigas da tradição ocidental como sendo nossa lembrou-me de um episódio. Lá por 1994, 95, não lembro ao certo, estava eu acompanhando uma amiga numa festa comunitária em Viamão, num sábado à tarde. Foi numa escola dessas tipo “brizoleta recauchutada”, tal como a que estudei meu Ensino Básico, que. Construída por Brizola nos anos 60, ganhara anexos no governo Collares (1991-95). Crianças, mães, pais, jovens, guloseimas, refri, cuscos, música (na época, o que “pegava” era “O Bonde do Tigrão”, embrião do punkadão carioca). Clima festivo e animado.

Como apenas acompanhava minha amiga, que trabalhava fazendo a filmagem da tal festa, era uma figura um tanto enigmática ali. Percebia uns olhares do tipo: “o que esse rapaz está fazendo aqui?”, “De onde ele veio?” À medida que as horas avançavam, ia, naturalmente, me enturmando com o pessoal, tudo gente boa. Gente como a gente, sabe?: classe média (mais baixa que a minha, mas classe média), universos parecidos, gestos parecidos, feições parecidas.

Até que, lá pelas tantas, minha amiga, eu e uma moradora do bairro começamos a conversar amenidades. Ela, uma mulata jovem de quem se notava simplicidade, era uma das curiosas quanto a mim mas demonstrava certa intimidação ao falar comigo. No entanto, no desenrolar da conversa, ela me olha e diz:

- Eu acho que te conheço. Tu não é filho da tia Dorinha?

(Observação: a título de prosódia, estou inventando o nome dessa senhora, viu? Não tenho condições de me lembrar disso.)

Eu, sendo filho da dona Iara, por óbvio respondi que não. A moça seguiu intrigada e prosseguiu com a indagação:

- Então quem é a tua família?, perguntou ela achando que eu fosse alguém do bairro.

Foi então que, com uma naturalidade desavisada, respondi:

- Na minha família são Reis.

Por uma fração de segundos, um turbilhão deve ter passado pela cabeça dela. A moça levou um susto tão grande que, involuntariamente, esbugalhou os olhos. Sei lá o que foi, se por minha postura convicta do que dizia ou pelo modo de falar, que talvez tenha transmitido subliminarmente a tal “assunção de certa autoimportância”. Mas o fato é que, ajudado pela minha mal formulada e dúbia frase, ela acreditou, sim, que eu descendesse de uma família real. Na hora, tive que me conter para não gargalhar na cara da moça, pois cheguei a enxergar uma cena comigo sentado num trono todo dourado, rodeado pelos meus parentes e animais da selva africana soltos em nosso castelo, e ela, humilde, a nos venerar. Juro que vi essa imagem.

O prosseguimento da conversa foi eu terminando de explicar quem eram meus parentes, usando inclusive os Rodrigues como reforço argumentativo. Alívio por parte dela.

O fato é que me lembro deste episódio hilário todos os Dias de Reis. Não tem como esquecê-lo, pois é neste dia que, segundo a tradição cristã novamente, desfazemos os enfeites de Natal.

O que sei é que, terminada a quermesse, fomos embora e, ao nos despedirmos, notei algo estranho. Pode ser loucura minha, mas parecia que a tal moça, que quase se ajoelhou a meus pés, ficou nos observando desconfiada guardar os equipamentos para ver onde eu tinha posto o cetro e a coroa...

Mas vai saber se meus antepassados não tiveram mesmo alguma coisa a ver com a recepção do menino Jesus naquele famigerado dia 6 de janeiro, né? Quem sabe Baltazar, um dos três reis magos, que saiu da minha originária África para levar mirra a Jesus a léguas de distância, foi ordenado por algum de nós, Reis, que àquela época já gostavam mandar. Vai saber. A única coisa é que, como dizem os Reis, os da minha amada família: “só sei que é um sarro”.



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