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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

cotidianas #330 - "Lave-me, por favor!"



Mal entrou na garagem do prédio onde trabalhava e deu de cara com aquela frase no capô dianteiro do seu carro: “LAVE-ME, POR FAVOR!”.
- Eu só queria saber quem foi o babaca que fez isso – praguejou entre os dentes para si mesmo e entrou no carro que, por sinal, não estava nem perto do que poderia se chamar de limpo.
Mas enfim, rumou para casa e esqueceu o assunto.
No dia seguinte, surpreendeu-se ao deparar-se com uma nova inscrição acrescentada à anterior, que, diga-se de passagem, nem se dera ao trabalho de apagar. Desta vez a pichação na poeira dizia: “FUI EU.”
Seria aquilo uma resposta à pergunta que fizera no dia anterior? Se era, o engraçadinho estava na garagem o observando. Provavelmente estava agora novamente.
Olhou em volta tentando localizar alguém atrás dos pilares da garagem e falou alto o suficiente para que quem estivesse por ali pudesse ouvir:
- Sai daí, ô babaca! Não tem mais o que fazer, não?
Não percebendo movimento nem resposta, insistiu:
- Não tem coragem de assumir o que faz, né, ô idiota.
De repente, por um momento teve a impressão de estar sendo traído pelos próprios olhos mas o que via era real. No capô do carro, logo abaixo das duas inscrições anteriores, se escrevia como se um dedo traçasse na poeira, a frase, “EU MESMO. SEU CARRO.”
Tomou um susto. Correu os olhos ao redor procurando algo. Algo invisível. Pensou em fantasmas, assombrações, maus espíritos. Só conseguiu exclamar:
- O que que tá acontecendo aqui?
O que foi respondido pela pena invisível sobre o capô empoeirado com a frase “Lave-me, por favor. Estou imundo.”
Pela primeira vez desde o primeiro momento de susto, dava margem à improvável possibilidade de que... o carro se comunicava com ele. Não! Impossível!
- É você, mesmo? Meu carro? - perguntou hesitante para aquele automóvel ali parado, não conseguindo evitar de sentir-se um pouco idiota. Mas viu a resposta escrever-se, novamente, assim como as outras, no metal poeirento do carro.
- “SIM”.
Sim, o carro comunicava-se com ele. Escrevia. Escrevia na sujeira da lataria. Ficou tomado de uma alegria infantil por um momento mas logo pensou na solicitação feita por seu próprio veículo.
- Mas se eu te lavar você não vai ter mais como falar comigo... - praticamente lamentou.
E viu então formar-se uma frase um pouco mais longa no pouco espaço que ainda restava na lataria da tampa do motor:
“EU SEMPRE ARRANJAREI UMA MANEIRA DE FALAR COM VOCÊ.”
Visivelmente emocionado, entrou no carro, girou a chave e dirigiu-se a um lava jato, onde observou cada fase do processo de limpeza como se apreciasse o banho um mascote.
Levou o carro para casa, entrou na garagem do condomínio, estacionou, saiu do veículo e como se dirigindo a um filho deu “Boa noite” antes de subir as escadas que levavam a seu apartamento.

No dia seguinte encontrou o carro lá. Lindo, Brilhante. Reluzente. Lamentou que não houvesse poeira para que o amigo lhe “falasse” alguma coisa. Sua frustração, no entanto, logo foi desfeita quando no pára-brisa dianteiro, subitamente embaçado sem motivo aparente, com uma delicada caligrafia, viu-se escrever apenas duas palavras: “BOM DIA!”.


Cly Reis

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