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terça-feira, 6 de maio de 2014

cotidianas #291 - O Relojoeiro



Ainda lembro daquele dia com estranha curiosidade e, porque não dizer um certo pavor. Meu relógio de bolso, que fora de meu pai e antes de meu avô e antes dele de meu bisavô e antes, devo admitir, não saber a procedência, mas tenho certeza ser mais antigo que a deste último patriarca, parara de funcionar sem motivo aparente. Movido pelo apego emocional que tinha àquela peça, tratei de procurar um relojoeiro, mas tomei o cuidado de procurar algum que soubesse lidar com aquele tipo de relíquia. Não podia ser um desses novos, dos novos tempos que só sabem mexer em relógios à pilha com mostradores digitais reluzentes ou em máquinas de mecânica tão lógica que eu mesmo o faria. Não era tão fácil. busquei pela cidade, percorri anúncios, consultei amigos se algum sabia de um confiável e mantinha-me atento às vitrinas e letreiros das lojas no centro da cidade. Não encontrava.
Certo dia voltando para casa, a pé, avistei uma pequena casa encravada entre prédios altos de apartamentos cujo anúncio na pequena fachada antiga e desgastada dizia "O Relojoeiro - consertamos relógios de todos os tipos". Embora genérico o anúncio, mais do que ele, a aparência austera do lugar me transmitira confiança para lá levar minha peça de família. O curioso é que mesmo sendo caminho para casa e passando frequentemente por ali, nunca vira aquela loja antes.
Decidi entrar. Empurrei a porta e fez-se tocar um pequeno sino fixado a ela. A pequena sala ela absolutamente toda coberta de relógios. Toda. Paredes, teto, balcão, janelas, exceção feita somente ao chão, se bem que havia caixas cheias deles encostadas às paredes o que devia atrapalhar a circulação. Eram relógios de bolso, de pulso, relógios-cuco, relógios de mesa, relógios-caneta, anéis com relógio, chapéus até. Minha distração com aquele mundo de tempo foi quebrada por uma voz de um homem que atravessara uma cortina vindo de alguma sala do fundo da loja. Era um homem baixo, de bigode curto, com calvície bem avançada e cabelos brancos onde lhe restavam. Usava um guarda-pó de couro com bolso e trazia às mãos um relógio ao qual polia insistentemente. Perguntou-me olhando por cima dos óculos se podia me ajudar. Respondi que meu relógio de bolso, de estimação, parecia, havia enguiçado e por ser muito antigo não confiava a qualquer relojoeiro que pudesse consertá-lo e perguntei-lhe então se saberia lidar com aquele tipo de mecanismo antigo. Perguntou-me então curioso por quê supunha que ele pudesse consertá-lo. Respondi que o anúncio abrangendo "todos os tipos" me passara confiança. Além do aspecto da loja, "pareceu-me passar credibilidade", disse-lhe. Riu. Pediu então para ver o meu relógio. tirei do bolso e mostrei-lhe. Olhou-me novamente por cima dos óculos, agora com semblante mais sério, voltou a olhar o relógio e o entregou-me. Disse que infelizmente não poderia consertá-lo. Perguntei se era algo muito complicado, se poderia levar a outro relojoeiro ao que respondeu que o caso não era que ele não conseguisse consertar, o relógio não poderia ser consertado. Ainda quis questionar o porquê mas apenas tomou minha mão, virou a palma para cima, colocou o relógio nela e fechou meus dedos. "Confie em mim", disse. E olhando-me de forma quase paterna completou "Cada relógio tem seu tempo. Agora vai. Vai.". Saí daquela loja e tomei a rua. Nada me pareceu como fora antes. Aliás os prédios que espremiam a casa de relógios já não estavam mais lá. Estranho. Tomei o rumo de casa.

Cly Reis

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