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domingo, 11 de agosto de 2013

cotidianas #239 Especial Dia dos Pais - A Bicicleta


São interessantes as recordações que se têm dos pais. Estas vêm à mente de forma pessoal e carinhosa, quanto mais quando bem vividas, o que ocorreu em vários momentos entre eu e meu pai, o velho Antonio Carlos, que se foi deste plano há pouco mais de quatro anos. A tal bicicleta a que me refiro no título, que provavelmente à maioria dos filhos seria lembrada por conta da vez em que seu pai o ensinou a andar de magrela, no meu caso, não é bem assim. Aliás, nem é este tipo de bicicleta. Desta, a minha bicicleta (ou melhor, a dele), tenho lembrança por causa de um acontecimento ocorrido em uma tarde qualquer no bairro em que me criei e onde ainda vivo, a Intercap, em Porto Alegre.
 Jogávamos bola eu e meus amigos como fazíamos religiosamente por puro prazer e sadia vagabundagem todo santo dia. Escola de manhã, futebol à tarde; certo. Não éramos muitos naquele dia, uns quatro ou cinco no máximo. Meu irmão, se a memória não me falha, coincidentemente, não estava. Nesta época, o campinho em que jogávamos, afetuosa e sarcasticamente por nós intitulado de Lixa Munumental Stadium, ou simplesmente Lixa, era ainda um terrenão aberto de piso de areão muito áspero que, como uma lixa, relava a pele de qualquer um que caísse no chão e era repleto de mato rasteiro ao lado oposto à rua perpendicular à da minha casa e cujas dimensões não eram nem de um campo oficial, para 11 jogadores, nem de futebol sete, tal como ficou depois que a Prefeitura transformou seu entorno em praça, incorporando-o ao espaço público. Havia duas goleiras feitas de pedaços de pau pregados e tamanhos desiguais de cada lado do campo, suficientes para que dois times jogassem um contra o outro, e isso era mais que suficiente para a nossa alegria. Eu tinha uns 12 ou 13 anos.
Como não éramos muitos naquela tarde, usávamos apenas uma das goleiras, a que dava de costas para a minha rua. Lá pelas tantas, fim de tarde, vi subindo-a, acompanhado de algum amigo que não recordo quem, meu pai. Vindo do trabalho, provavelmente descera na Av. Ipiranga e caminhara as cinco quadras até a praça em direção à nossa casa, uma quadra a mais dali. Muito querido e respeitado por minha turma de amigos, foi cumprimentado com apreço pela gurizada, pois era, de fato, uma figura simpática e brincalhona mas que não escondia, sempre que podia, uma boa dose de autoconvencimento. Se “achava” para algumas coisas seu Antonio, o que era folcloricamente engraçado. Não à toa, pois em torno de sua figura se formaram certas lendas entre os amigos e conhecidos que ouvíamos frequentemente. Uma delas era a de que jogara, na juventude, no linguajar futebolístico, “muita bola”. Os amigos que o viram jogar nesta época o reverenciavam, relembrando partidas em que sua atuação fora fundamental para a vitória em peleias inesquecíveis na tal “Sede”, um outro campo também encravado em um terreno baldio do bairro mais adiante dali e igualmente transformado em praça tempo depois, porém este realmente com tamanho de campo oficial e com um pouco mais de estrutura que a Lixa. Por causa disso, na Sede se disputavam concorridos campeonatos da região nos anos 70 e 80, e meu pai atuara, pelo que se dizia, com brilhantismo de craque nestes tempos de ouro.
A aura mítica recaía não somente sobre meu pai. Outros contemporâneos de peladas dele também mereciam elogios, como o Caio (também morto faz alguns anos), de quem se dizia ter a cobrança de falta mais apimentada da Intercap: dava apenas dois passos de distância para a bola, suficientes para desferir um chute forte e indefensável no ângulo do arqueiro. Mas era meu pai quem mais empilhava lendas da bola no arrabalde. Era comum eu e meu irmão ouvirmos dos amigos jurássicos, invariavelmente admiradores: “Jogava muito o nêgo Antonio!” ou: “Batia um bolão o teu pai, hein?”. Vi-o jogar uma vez, ao que me lembro, anos mais tarde, final dos anos 80, na sede campestre dos funcionários municipais, na Zona Sul da cidade (longe da minha casa, que fica na Sudeste), como zagueiro, curiosamente a mesma posição minha, porém, ele no lado direito do campo, e eu, canhoto de perna como meu irmão, no esquerdo. Ao que recordo de minha cabeça dispersa de piá que estava lá mais interessado em passear e tomar um refrigerante no bar, a atuação dele foi segura e sem rodeios.
Voltando àquele fim de tarde, meus amigos e eu, gurizada arreada e sempre pronta para tirar sarro de qualquer coisa, tinha respeito por meu pai, mas não a mesma veneração que os mais velhos lhe imputavam, pois mantínhamos certo ceticismo com tais fábulas. Batíamos aquela bolinha ali despretensiosamente e, se não me engano, no momento em que meu pai apontou, um dos nossos, metido a boleiro, tentava dar uma bicicleta. Até conseguia a seu jeito, pedindo para que o outro repetisse o cruzamento para que ele emendasse, novamente, aquela virada no ar com os pés trocados num chute em direção ao gol. A cena fez despertar o Antonio convencido. Putz! Imediatamente ele se despediu do tal amigo (ou o deixou esperando) e veio até nós. Largando a bolsa de trabalho no pé da trave, disse-nos no seu saudoso tom de “sabe tudo”:
- Isso não é bicicleta! Vocês não sabem nada! Bicicleta se pula com as duas pernas no ar. Agora vou mostrar pra vocês o que é uma bicicleta!
Meio incrédulos, nós, entre risos desconfiados e irônicos, acatamos. Pensávamos igual, mesmo sem precisar falar: “o que esse véio vai fazer caindo de costas no chão vestido de calça social, sapatos e camisa? Decerto vai ‘furar’ na bola, espirrar o taco ou mandá-la longe do gol!” Tudo nos levava a crer que aquilo daria em trapalhada...
- Vai lá, – mandou para o que estava com a bola – cruza aqui na área pra mim. Cruza alto! –pontuou, apontando para cima de sua cabeça cerca de um metro acima e na direção oposta ao gol.
Meu pai, já de costas para o goleiro, posição em que poderia executar a tal bicicleta desacreditada, aguardava o passe. Obediente, o guri rolou levemente a redonda no areão na ponta esquerda para dar impulso e a lançou para a área. Alto, como pedira. Num movimento incrivelmente perfeito, como só um Zico, Pelé ou Leônidas da Silva (criador do lance) executariam, seu Antonio tomou impulsão e voou de costas cerca de um metro e meio do chão. Pernas totalmente esticadas para alcançar a bola lá naquela altura. E alcançou. Com precisão, acertou-a com o bico do pé direito, o qual era acompanhado simultaneamente pelo esquerdo, que, como ele apregoara teoricamente, teria de subir junto e ao mesmo tempo que o outro pé. O chute? Saiu como um canhão. Pegou na trave superior tal um tiro, balançando a madeira falseante, ricocheteou com quase a mesma velocidade no chão e foi parar dentro do gol. Tudo muito rápido. O goleiro, congelado, nem se mexeu. Como se diz na gíria do futebol, nem viu a cor da bola. Um golaço.
Embasbacados, vimos meu pai, faceiro e inflado, levantar-se com as costas todas sujas da areia rosada do campinho e com os fundilhos da calça rasgados. Não importava. Nós, guris, nem nos atrevemos a fazer gozação por causa da calça tal impressionados que ficamos com o que presenciamos. Calou-nos a boca. E a ele importava menos ainda, pois sua satisfação em ter executado com tamanha perfeição aquele malabarismo e nos dado a lição certamente lhe deixara nas nuvens para o resto do dia.

Esta imagem tão remota me veio esta semana como um presente e uma homenagem que gostaria de prestar no Dia dos Pais ao saudoso seu Antonio, colorado passional como eu e meus irmãos, que com certeza ficaria muito contente de saber que relembro deste episódio. Definitivamente, cada filho tem a memória da bicicleta que merece.



3 comentários:

  1. É, Daniel. Acho que não estava mesmo naquele dia.
    Mas queria ter visto.
    Aquele campinho, aliás, presenciou coisas fantásticas e divertidíssimas. Grande campo de recordações.

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  2. Lembro que estavam, com certeza, o Tairone e o Fábio. Tinha mais um ou dois, que não faço ideia agora: talvez o Mico, o Marcelo, o Cutela, o Cris...

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  3. Que linda homenagem Daniel! Ele, realmente deve ter se sentido nas nuvens, pois que como tu bem lembrou, em matéria de futebol ele "se achava" e dizia que só não foi um grande craque por falta
    de oportunidade, o que nos fazia rir, por considerar exagero por parte dele. Iara.

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