Curta no Facebook

segunda-feira, 3 de junho de 2013

cotidianas #227 - Interferência


Desde que comprara aquele walkie-talkie para o filho a atividade mais comum entre os dois naquela casa era pai num quarto e o menino em outro brincando de bombeiro, de detetive, de polícia ou qualquer coisa que minimamente sugerisse comunicação por rádio. Não era de grande alcance, era bem fraco o sinal do brinquedo, mas entre um cômodo e outro da casa, até que dava conta.
- Gavião para Falcão-Vermelho, Gavião para Falcão-Vermelho, responda... Tshhhc
- Falcão-Vermelho na escuta... tshhhc - respondia o garoto - ... pode falar... tshhhc
- Gavião em posição para ataque. Alvo na mira... tshhhc
E era aquilo o dia inteiro quando o pai-coruja, aquela verdadeira criança grande podia estar em casa e brincar com o guri que recém tinha completado seus 4 anos.
O único inconveniente do brinquedo, além das ralhações da esposa dizendo que o marido não crescia, que não tivera infância e tudo mais, eram as interferências. Volta e meia, no meio da brincadeira, entre uma chamada do Falcão-Vermelho para o Gavião, surgia a voz de alguém no interfone do prédio, o locutor da TV ou algum pedaço de chamada telefônica. No início o pai se incomodou um pouco com o fato, mas depois, sendo um brinquedo, já não dava mais bola para aquilo. Era só ignorar.
Tinha de tudo: pedido de pizza, namorados apaixonados, reclamação de telefonia e até brigas de casal. Certa vez, uma dessas rusgas, em particular, lhe chamou a atenção pela agressividade. "Se eu souber que tu tá com aquele cara eu te mato...tshhhc" ouviu do outro lado da linha atrapalhando o chamado da ambulância do filho. "Nossa!", pensou. Mas não deu muita bola como de costume. "Esse pessoal vive brigando. "Marido ciumento é fogo", ainda falou sozinho antes de ir para a cozinha imitando o barulho da sirene da ambulância, enlouquecendo a esposa.
Mas certa tarde, brincando novamente com o menino, voltou a ouvir, provavelmente, a mesma voz ameaçadora. Devia ser uma nova briga do mesmo casal.
Entrecortada, picotada entre falhas, chiados e atrapalhada pelos apelos do filho para continuar brincando, podia ouvir:
- ... Eu não te disse... tshhhc... com ele?... tsssshhhc. Eu não...tschhhc...?
- Pai, vamo brincá?
- Espera, filho, espera um pouco.
- ... não te amo mais... tshhhc... tschhhhc... é que é homem  de verdade! Eu vou morar com e...tshhhhc - respondia zombeteira uma voz de mulher.
- Paiêêê.
- Espera, deixa o pai ouvir - impaciente para o filho
- Uéééé - e saiu a criança abrindo o berreiro pela casa afora.
- ...te disse, eu te disse... tshhhhc... te matar... tssshhc... encher de bala.
E não ouviu mais nada. O homem havia desligado.
Que coisa. Que violência!
Será que faria o que tinha prometido?
Que nada! Esses cornos são assim mesmo. Prometem fazer mas vão pro bar encher a cara. Deixa isso pra lá.
Percebendo que tinha ignorado o filho por alguns instantes, tratou de chamá-lo, consolá-lo e voltar à brincadeira.
- Tango/1, qual sua posição. Responda, Tango/1...tshhhc.
Ao que o garoto voltou animado com seu walkie-talkie em punho respondendo a localização do Tango/1.
No dia seguinte, ao abrir o jornal deu com a notícia, "MULHER É MORTA A TIROS NA CAPITAL".
Teria sido?
Não, não podia ser.
Tinha ouvido tudo, sabia quem tinha cometido o crime mas não podia ajudar em nada. E além do mais, como é que ia dizer à polícia que tinha ouvido tudo por causa de uma interferência em um walkie-talkie de brinquedo? Mas nem sequer tinha certeza de que era a mesma mulher, de que o homem resolvera cumprir a ameaça, de que tinha usado arma de fogo...
Não, provavelmente não era o mesmo crime.
Melhor voltar a brincar com guri e esquecer essa bobagem toda:
- Viatura 344, viatura 344... tshhhc... Verificar ocorrência... tshhhc... Mulher baleada, ex-marido suspeito. Câmbio... tshhhhc
- Indo para o local, ... tshhhc... Câmbio.
- ...eu queria fazer um pedido: é uma pizza grande quatro queijos.
- ...Tssshhhhhhhhc...



Cly Reis

Nenhum comentário:

Postar um comentário