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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Cotidianas Especial #200 - Arte


"A arte naturaliza a todos na mesma pátria superior"
Machado de Assis
"Na arte já não nos preocupam os padrões, mas as exceções."
Oscar Wilde


-A arte tem mais valor do que a verdade - argumentava para os jornalistas, parafraseando Nietszche, a fim de defender seu trabalho.

Controverso, ousado, digressor, admirado, odiado, por vezes repudiado, apresentava um trabalho inegavelmente original. Muitas vezes chocante, é verdade, mas indubitavelmente único. Agressivo, de gosto duvidoso, repugnante, sem noção, sem limite, eram apenas algumas das muitas definições e adjetivos utilizados mundo afora por onde suas obras eram instaladas em galerias, mostras, exposições e bienais, dividindo opiniões e gerando manifestações de toda a ordem.

Uma sala com um centena de baldes com fetos humanos mortos, um pele esticada de um homem esfolado servindo como tela na parede, uma instalação com urubus vivos comendo carniça de porcos, pessoas comendo e vomitando o tempo inteiro dentro de uma jaula são apenas alguns exemplos das bizarrices proporcionadas por aquele que era considerado por muitos o maior artista vivo. É lógico que obras como essas eram incansavelmente combatidas por ONG's, Igreja, Direitos Humanos, Direitos do Animais, que muitas vezes ganhavam as brigas e impediam a exposição de acontecer ou sequer desembarcar numa cidade, mas muitas vezes tinham que engolir e aceitar que aquelas obras grotescas fossem expostas, nestes casos, gerando manifestações, passeatas, cartazes, pixações e depredações públicas.

Foi o que aconteceu daquela vez. A exposição seria realizada. Já havia garantias do departamento de Cultura, da prefeitura, o museu havia ganho na Justiça o direito de mostrá-la alegando que a não apresentação de qualquer uma daquelas obras feriria a liberdade de expressão, seria censura, etc. Da parte do artista, desta vez abriria mão até mesmo de seus polpudos cachês, mas fazia questão de que não houvesse qualquer interferência em seu trabalho e que o mesmo ficasse oculto e inacessível até o dia da abertura da mostra. Até lá, apenas seus homens, seus montadores, carregadores e funcionários teriam acesso, por uma entrada exclusiva, à sala onde a instalação seria montada. Era difícil aceitar algo assim, ainda mais sabendo-se do histórico de obras polêmicas, mas como tratava-se de um gênio diferenciado, não poderiam ficar barganhando e correr o risco de perder a oportunidade de ter um nome como aquele expondo na sua cidade. Seria um evento único e irrepetível.

Assim, homens de macacão recebiam caminhões, entravam com caixas enormes e paineis de vidro por um acesso alternativo do prédio, modo que ninguém tivesse contato com aqueles materiais, enquanto lá dentro, outros montavam aquela misteriosa 'obra-de-arte'.

Perguntado uns dias antes por jornalistas sobre o que o público poderia esperar, o criador, misterioso, limitou-se a dizer que seria uma obra mutável, de transformação. Que haveria, sim, um momento crucial logo na abertura do evento, mas que a obra continuaria acontecendo até quando os organizadores achassem que devesse durar ali dentro da galeria, mas que certamente continuaria em curso de qualquer modo. Os repórteres tentaram maiores explicações, mas como todo o artista, excêntrico, retirou-se sem maiores informações.

Assim, ansiosos por presenciar o momento crucial da anunciada transformação da obra, um dia antes da exposição filas formavam-se pra ver o que aquele suposto gênio havia preparado daquela vez. Infelizmente para muitos a sala onde sua instalação fora montada tinha sua limitação física e apenas algo em torno de cem pessoas puderam entrar num primeiro momento, os que seriam,  por assim dizer os  privilegiados.

As portas do Centro Cultural abriram-se às 10 da manhã e aquela centena de contemplados correu para a sala onde o artistas preparara sua obra. Ignorando as outras esculturas, telas, fotografias nos salões vizinhos artistas valorosos e renomados, apressavam-se para chegar ao salão 3-sul. Chegando lá, depararam-se com algo surpreendentemente simples para toda aquele alarde: que via-se era apenas uma grande caixa de vidro, de mais ou menos 25 metros quadrados. Esta era a grande obra? Não exatamente. Deve-se dizer que aqueles painéis eram de vidro blindado, inquebrável, que foram fechados no local, lacrados hermeticamente e que entre suas paredes estava, nada mais nada menos do que nosso artista, nu com uma pistola calibre 22 na mão. A pequena multidão se dividia entre sensações de admiração, decepção, pânico, expectativa e curiosidade. "Pelado, que ridículo". "Quer se mostrar, o palhaço". "E aquela arma na mão?". "Será que a arma é de verdade?". "Iria ele...?"."Não, ele não faria isso". "Não chegaria a tal ponto". "Não levaria sua ARTE a tal limite.."

Foi quando às 10 horas e 08 minutos se ouviu o disparo. Pedaços do cérebro voaram grudando-se ao vidro. Alguns só gritavam, outros se acotovelavam tentando sair dali, outros riam, outros choravam, outros tiravam fotos, outros desmaiavam  alguns aplaudiam.

A polícia, a retirada do público, a imprensa, o isolamento da área, os bombeiros tentando arrombar a caixa, a retirada do corpo depois de horas de trabalho, o fechamento do Centro Cultural, a repercussão pública, as consequências, tudo aquilo apenas complementava a obra que havia-se iniciado com aquele tiro, ou melhor, havia-se iniciado quando o viram nu dentro de um cubo transparente. Tudo correu conforme a intenção original concebida pelo artista.

Aquela havia sido e seria por muito tempo, sem dúvida, a maior obra de arte de todos os tempos.


Cly Reis


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