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quinta-feira, 22 de março de 2012

cotidianas #147 - O Filho do Diabo

Quem seria àquela hora?
As batidas insistentes na porta interrompiam sua habitual sesta, da qual não abria mão, principalmente naquela época do ano em que fazia muito calor. Lidara a manhã inteira no campo de algodão e agora que conseguia descansar o corpo exausto um inconveniente vinha incomodá-lo. Quem seria?
Levantou-se ainda meio sonolento, vestiu a calça e foi até a porta ainda vestindo a camiseta regata. Abriu apenas a porta interna de madeira, deixando fechada a porta telada que lhe socorria dos insetos à noite. A claridade da rua ofuscou por um momento seus olhos, mas assim que fixou a visão, deparou-se com um negro retinto magro de chapéu de abas largas na cabeça e vestido com um terno escuro com camisa branca e  uma gravata estreita fixada no colarinho por um pregador prateado. O negro que exibia um sorriso largo, amplo, branco e com um sutil ar debochado, inclinou-se suavemente para a frente, aproximando o rosto da tela de mosquitos, encarando o dono da casa com interesse.
- Em que posso ajudá-lo? - quis saber o jovem Bob com uma certa irritação por ter sido acordado.
O desconhecido, sem desfazer o sorriso, respondeu com outra pergunta:
- Não se lembra de mim, irmão?
Bob não era bom fisionomista, mas tinha certeza de nunca ter visto aquele cidadão antes, até porque não haveria como esquecer um sorriso daqueles que parecia ter todos os dentes do mundo.
- Não, acho que não - respondeu esperando ser, então, informado acerca da ocasião da apresentação entre os dois. Mas não foi o que recebeu.
- Tem certeza, irmão?
A insistência do estranho, aliada à inconveniência da visita começavam a lhe incomodar um pouco mais agora. Sem falar naquele incômodo tratamento excessivamente aproximador, ainda mais por aquelas bandas do Mississipi, principalmente entre os pretos, como ambos eram.
- Sim, tenho certeza! Agora vai dizendo o que quer ou vai caindo fora - levantando a voz.
- Desculpe, irmão.  - disse o estranho sem desfazer um milímetro da bocarra sorridente - é que por um momento achei que seu rosto me fosse familiar...
- E então? O que quer? - insistiu.
- Sua mãe está, irmão?
Bob não conseguiu disfarçar um certo embaraço:
- Minha mãe morreu faz 7 anos, cara! o que é que você quer afinal?
- Ah, sinto muito, irmão. Me solidarizo com sua dor. - agora escondendo os dentes mas mantendo um tom de troça e levando o chapéu ao peito como em condolência.
- E pare de me chamar de irmão. - ordenou finalmente tomando aquela atitude que já queria ter tomado desde que o homem o chamara daquela maneira pela primeira vez naquela tarde
- Mas não somos todos irmãos perante... Ele, irmão? - argumentou em tom cínico movendo apenas os olhos na direção do céu.
- E quer saber: vai dando o fora daqui antes que eu pegue a minha espingarda e te ponha pra fora cheio de chumbo no rabo.
- Desculpe, irmão. Eu não quis incomodar.
- Eu já disse pra não me chamar mais de irmão, cara! Chega dessa merda, eu vou pegar a minha arma.
E já ia virando quando o sujeito falou:
- Se prefere assim, Robert.
Interrompeu o movimento e parou intrigado.
- Como sabe o meu nome?
- Eu sei muitas coisas, Robert - agora definitivamente abandonando o tratamento de irmão.
- Quem é você? - perguntou o rapaz agora verdadeiramente curioso.
-Não se lembra de mim, Robert?
Não tendo resposta do rapaz que continuava encarando-o como que procurando alguma informação em algum lugar remoto da memória, o estranho de sorriso cheio continuou:
- É, acho que não poderia lembrar, mesmo. Mas conheci sua mãe.
Foi perceptível quando Robert arregalou os olhos.
Continuou:
- Ela ia a esses bares de pretos onde nós costumávamos tocar. Eu toquei com o teu pai, sabia?
A revelação pareceu estremecer o rapaz.
- Conheceu meu pai? Você sabe quem ele é?
- Ah, pode estar certo disso, irmão. O homem era bom naquilo. No blues, sabe? As mulheres caíam por ele. Foi o que aconteceu com a tua mãe. O problema é que quase sempre os maridos, os namorados não gostavam muito disso. Foi o que aconteceu com o homem dela. É, filho, um irmão que vivia com ela não gostou muito dessa brincadeira e "PUM!". Mandou bala no teu pai, irmão.
Então a mãe envolvera-se com um blueseiro. O pai fora assassinado. Por ciúmes! A revelação era assustadora. A mãe sempre lhe dissera simplesmente que o pai sumira no mundo. Por que nunca lhe contara aquilo?
- Tinha o teu mesmo nome, guri - disse agora mudando de tratamento novamente - De certo tua mãe quis homenagear. - completou esticando a última palavra ealargando ainda mais o sorrisão.
E continuou:
- O problema é que ele ficou me devendo uma coisa antes de morrer. Não estava nos meus planos que chegasse um sujeito qualquer de cabeça enfeitada e enchesse teu pai de bala. Aí que eu não tive tempo de cobrar.
- Eu não tenho muito dinheiro, moço, mas quanto é que ele ficou devendo? Sendo coisa justa e se estiver dentro do meu possível eu posso ver se consigo dar um jeito.
Riu alto desta vez e balançou a cabeça negativamente o estranho.
- Não, não. Não se trata de dinheiro.
- O quê, então?
- Teu pai pediu minha ajuda e eu ajudei. Ele só tocava daquele jeito por minha causa, cara! Eu que afinei o violão pra ele. E olha que ele tocava demais, filho. Mas, tinha que vir aquele côrno gordo e "PÁ!". Eu não estava pronto pra levar o que era meu naquele dia, sabe? Aí que ele se salvou. Eu não consegui levar o que ele havia tratado comigo.
- Ainda não entendo...
- Entende, sim - mostrou ainda mais os dentes brancos o negro parado à porta.
- Você já tocou o blues, rapaz? - perguntou o estranho.
- Não. Minha mãe sempre me dizia que isso era coisa de vagabundos, que um homem de bem tem que trabalhar e não ficar andando com um violão, uma guitarra, uma gaita por aí. Nunca me deixou pegar num violão. - explicou o rapaz um tanto confuso.
- Tem um violão aí? - quis saber o negro apesar de já saber a resposta.
- Acho que tem um sim que a minha mãe guardava escondido de mim, no sótão.
- Vai lá buscar, filho. Eu espero.
Hesitou um pouco mas curioso, fechou também a porta de madeira, além da outra vazada que já estava fechada, por alguma garantia qualquer que desconhecia, e foi-se lá para dentro a buscar o instrumento.
Subiu ao sótão rapidamente e achou fácil atrás das antigas coisas da mãe falecida. Estava branco de poeira e as cordas irremediavelmente oxidadas. Espanou o violão como pode, desceu as escadas e levou ao estranho que esperava imóvel e com o mesmo sorriso de quando o deixara naquele mesmo lugar.
- Aqui está. - apresentou ao estranho.
- Sabe tocar?
- Já disse que não sei. Minha mãe nunca me deixou me aproximar disso - reforçou o rapaz.
- Eu acho que sabe... Toca. - disse apontando para o violão.
O rapaz então o empunhou com uma destreza que surpreendeu a ele mesmo. Levou à altura do peito e mesmo duvidando de si próprio moveu os dedos às cordas. De uma maneira inexplicável, assim que começou a mover os dedos, passou a produzir um som mágico, uma melodia admirável. O violão guardado todos aqueles anos estava perfeitamente afinado. E, cara, aquilo era blues! Era blues! Nunca havia tocado. Nem as cordas enferrujadas o impediam de fazer aquilo daquela maneira magistral. Que música era aquela? Nunca havia ouvido mas era como se a tivesse conhecido a vida toda. Robert podia não saber que música era aquela mas o estranho sabia: chamava-se"Me and the Devil Blues".
- Viu, guri. - agora já variava o tratamento entre irmão, filho, guri, cara...
- Como pode? Eu nunca...
- Foi seu pai. De alguma forma a alma dele permanece em você. E sabe como é que é, filho: trato é trato.
Robert só então parecia se dar conta do que se passava ali. De quem era aquele negro retinto permanentemente sorridente ali à sua frente. Sempre ouvira falar que os homens daquela região faziam muito desses tais pactos há muito tempo atrás mas nunca acreditara que fosse verdade.
- É alguma brincadeira? - quis certificar-se Robert.
- Temo que não, irmão.
- E o que acontece agora?
- Você vai lá dentro, veste um bom terno e vem comigo - como se fizesse alguma diferença vestir-se bem ou mal indo para o lugar onde o homem pretendia levá-lo.
- E se eu não quiser? - perguntou com uma ponta de medo do que teria como resposta.
- Bom, guri, esse foi só um primeiro encontro. Só quis que você soubesse das coisas, soubesse que eu estou por perto, de olho em você. Não esperava mesmo que viesse logo de cara. Se você não quiser vir hoje não tem problema, mais cedo ou mais tarde vai acabar tendo que vir. Mas pode ter certeza que eu não vou-te deixar escapar que nem aconteceu com o teu pai. - e perguntou só para confirmar - Mas então, você vem ou não?
- Não vou, não. Nem hoje nem nunca. Eu não tenho nada a ver com isso. Não tenho nada a ver se um blueseiro bêbado prometeu a alma pra Este ou pr'Aquele.
- Tem sim, guri. Tem sim - falou pacientemente e depois continuou - Mas não precisa ficar nervoso. Eu vou-me embora. Foi um prazer conhecê-lo, Robert - disse agora fazendo a mesma mesura da chegada, curvando-se e levando o chapéu ao peito, com os olhos cravados no rapaz e o sorriso, agora parecendo sinistro, absolutamente inalterado.
Virou as costas, desceu os dois degraus do alpendre e tomou o caminho de terra que começava na frente da casa. Andou poucos passos mas logo deteve-se voltando a cabeça para a casa, lançando um último olhar para o rapaz e fazendo questão de lembrá-lo daquilo que ele, Robert, no seu íntimo não tinha a menor dúvida:
- Eu volto - disse o negro, agora finalmente fechando o sorriso.
Robert só então abriu a porta de tela e ficou parado no alpendre com o violão em uma das mãos ao lado do corpo, acompanhando com os olhos o homem que ia caminhando pela estrada. Foi se afastando, se afastando e quando quase sumia da vista, um carro passou levantando poeira e que fez com que o estranho desparecesse finalmente ali pela altura da encruzilhada.



Cly Reis

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