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quinta-feira, 15 de março de 2012

cotidianas #145 - É ele


Aquela, de início, parecia ser uma manhã como qualquer outra. Acordou, escovou os dentes, tomou café, arrumou-se e saiu para trabalhar. Mas tão logo botou o pé na rua percebeu que alguma coisa estranha estava acontecendo. Cumprimentou o vizinho que, não só não lhe respondeu, como saiu voando para dentro de casa como se tivesse visto um monstro. Achou estranho mas pensou que o homem podia estar com algum problema pessoal ou algo do tipo. Continuou andando mas ao longo do caminho até o ponto de ônibus, notou que as pessoas o olhavam de um modo esquisito. Alguns lhe dirigiam olhares raivosos, outros repulsivos, outros pareciam com medo, outros mostravam espanto e, não raro, muitos destes olhares vinham acompanhados de dedos apontados em sua direção, cochichos ou correrias. Às vezes conseguia ouvir um comentário que outro dos que passavam mais perto e o que mais escutava era "É ele".
Na fila do ônibus não foi diferente e teve que aguentar todas aquelas pessoas lhe encarando de viés e cochichando um para o outro "É ele", com o que alguns concordavam, "É ele, sim"; outros duvidavam "Não pode ser ele"; e outros mesmo reforçavam "É ele, sim. Tenho certeza".
A maioria das pessoas optou por sequer entrar no ônibus quando este chegou, mas os que entraram ficaram todos amontoados num canto do ônibus tentando, entre eles, confirmar se era quem estavam pensando, deixando o sujeito sozinho no outro lado. Apesar da separação dos passageiros, o veículo seguia normalmente até que o próprio motorista, assim que percebeu quem conduzia, negou-se a seguir viagem  e abandonou o carro ali mesmo em meio a uma movimentada avenida. Os outros, confirmada a impressão de que aquela era a pessoa que pensavam, apressaram-se em seguir o motorista deixando aquele cidadão sozinho no carro.
Sem opção, mas por sorte já próximo do local de trabalho, seguiu o resto do caminho a pé, e claro, não sem ser fuzilado pelos olhares de todos que por ele passavam e ouvir aquele constante cochicho de "É ele".
Chegou ao prédio onde trabalhava e, na portaria, o seu Zé, porteiro costumeiramente simpático, já o encarou com um olhar incriminador. Dirigiu-se ao elevador, cumprimentou a ascensorista que simplesmente saiu do seu posto, bem como outros dois passageiros que a seguiram e abandonaram a cabine. Não pode deixar de ouvir, às suas costas, dos dois que permaneceram no elevador, a mesma coisa que ouvira desde que acordara, "É ele", "É, sim. É ele, com certeza".
Saltou no andar do escritório onde trabalhava e, assim que pisou no hall, deu seu tradicional "bom dia" geral, como costumava fazer todas as manhãs, o que foi retribuído desta vez com um verdadeiro mar de caras fechadas e olhares inquisidores.
"É ele, mesmo", "É ele" era o que ouvia conforme passava pelas mesas dos colegas, enquanto dirigia-se à sua. Antes de chegar, porém, ao seu posto, foi interceptado pelo chefe:
- Muito bonito, hein! Quem diria, o senhor...
- Mas... - tentou argumentar sabe-se lá o que, mas de qualquer forma, nem teve tempo.
- Eu não quero saber. Ponha-se daqui pra fora - disse o chefe já virando as costas sem dar explicação.
Viu-se completamente confuso, sem norte, sem saber o que se passava. Tentou pedir explicação a um colega sobre o que era aquilo tudo, tentou justificar que só poderia tratar-se de um engano, mas este simplesmente retirou-se quase em disparada para o banheiro. O que era aquilo? O que estavam atribuindo a ele? Sob a mira dos olhares fulminantes dos outros e sem chance de obter ali qualquer explicação, só lhe restava sair dali e voltar para casa.
Tomou o elevador, desta vez vazio na descida, mas ao chegar no térreo encontrou o saguão cheio de gente com aspectos ameaçadores e o seu Zé, o zelador, à frente deles apontando na sua direção: "Olha, eu não falei que era ele?".
Os outros, estranhos, que encontravam-se ali no hall do prédio concordaram  aos gritos "Ééééé!!!", "É ele". Algum gritou "Pega!". Outro, "Mata ele". Aí assustou-se! Agora estava assustado de verdade.
Saiu rompendo, acotovelando a pequena multidão e vencendo-a a muito custo, viu-se na rua, na calçada. Tinha que fugir. Não sabia de que, não sabia porquê mas tinha que fugir daquele povo que agora começava a ficar selvagem. Tinha que encontrar algum lugar onde se sentisse seguro, onde não o acusassem, onde não o odiassem.
Foi caminhando com passo acelerado pensando para onde poderia ir, mas enquanto isso o jornaleiro o apontava, o mendigo o apontava, uma mulher com carrinho de bebê o apontou histérica e pediu socorro, até o cachorro de uma velhinha começou a rosnar pra ele, e então outra pequena multidão começou a se acumular e logo também passou a persegui-lo.
Agora corria. Correu, correu até que viu aquele grupo de perseguidores afastados o bastante. Deu por si e estava próximo ao parque da cidade e, aproveitando a camuflagem natural que ofereciam as plantas, achou por bem embrenhar-se entre os arbustos a fim de despistar a horda. Além do mais, se conseguisse atravessar o parque, a casa de sua mãe não ficava muito distante, do outro lado.
Conseguiu.
Atravessou, seguiu por algumas ruas esgueirando-se, escondendo o rosto como podia, até que viu-se diante do portão da casa de sua mãe. Dirigiu-se apressadamente para a porta e nem lembrando-se que tinha a chave, confuso que estava, tocou a campainha.
A porta abriu-se e o que viu então foi a mãe, ladeada por dois policiais.
- Que vergonha, meu filho! Tu hein...
E dirigindo-se aos dois policiais:
- É ele. Podem levar.

Cly Reis

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